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Bolsonaro e o governo do “duplipensamento”

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Certo dia um amigo e eu estávamos conversando sobre quais caminhos acreditávamos ser o melhor para o país. Percebemos que em meio a bifurcação a qual nos encontramos em determinado momento da vida, acabamos optando por rumos contrários. Eu à esquerda, ele à direita.

E isso implica muitas questões complexas. A primeira é que ao analisarmos um mesmo objeto, observamos com lentes completamente diferentes e, a partir de experiências de vida e teses igualmente díspares.

A segunda complexidade é que olhares diferentes alteram também o significado e, talvez, a natureza do próprio objeto. Por isso, nossas sínteses sempre acabam sendo igualmente contrárias.

Ainda assim, houve um determinado momento na história em que, pelo menos em alguns pressupostos, estávamos de acordo (ao menos era o que parecia). E aqui utilizo o plural não mais para se referir ao meu amigo e eu, mas à humanidade de maneira geral.

Atualmente divergimos, inclusive sobre essas questões. Muitos hoje em dia consideram o nazismo como um regime de esquerda, mesmo que isso não seja aceito na própria Alemanha, onde a desgraça aconteceu e mesmo que o maior líder do regime nazista, Adolf Hitler, perseguisse abertamente socialistas e comunistas e fosse antimarxista.

Acontece que ele soube se valer de uma ferramenta bastante utilizada por regimes autoritários (tanto de esquerda quanto de direita) – e denunciada por George Orwell em sua romance distópico intitulado 1984 – que é o duplipensamento.

Em seu livro, o autor se refere a isso como a capacidade de abrigar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e acreditar em ambas.

O Nazismo é um exemplo interessante já que seu nome “Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães” serviu justamente para atrair pessoas com ideologias completamente opostas, já que os dois movimentos mais populares à época eram justamente o nacionalismo e o socialismo.

As próprias cores do regime nazista abarcavam o vermelho, símbolo do socialismo, e que representava o lado “social” do regime; o branco, que representa o pensamento nacionalista e a suástica como símbolo de vitória dos arianos sobre os demais povos.

E em seu próprio livro,  Mein Kampf, Hitler afirma que as cores utilizadas em suas propagandas foram intencionais. “Escolhemos a cor vermelha dos nossos pôsteres após cuidadosa consideração, dessa forma provocando a esquerda, causando indignação e tentando-os a vir a nossos encontros”.

Essa dualidade proposital serviu para que hoje muitas pessoas discordem sobre a real ideologia do partido nazista, pois, como afirma Orwell, “o intelectual do Partido sabe em que direção suas memórias precisam ser alteradas; em consequência, sabe que está manipulando a realidade”.

E o fato de precisar sustentar essa política do duplipensamento diariamente e, a todo o momento, faz com que o próprio líder do partido acabe acreditando nessa realidade alternativa.

O caso brasileiro

Uma outra espécie do que Orwell chama de duplipensamento também criou raízes no Brasil. Em sua obra “A crítica da razão tupiniquim”, Roberto Gomes concorda com Antônio Paim sobre o fato de a corrente eclética ser o primeiro movimento filosófico amplamente estruturado no país, configurando o espírito das elites dirigentes do Brasil. Segundo o autor, foi sobre suas bases que se lançou a famigerada ideologia da conciliação e, consequentemente, o mito da imparcialidade.

Nisto, consiste a ilusão de que “possamos, imparcialmente, usufruir de benefícios das mais diversas reflexões estrangeiras, delas retirando o ‘melhor’”. Entretanto, Gomes afirma que para assimilarmos qualquer conteúdo, precisamos, antes de tudo, de uma estrutura que assimile. Ou seja, seria ingenuidade de nossa parte buscarmos dissolver oposições para extrairmos o melhor de cada ideia, mesmo que sejam completamente opostas, já que a extração do “melhor” exige seletividade e, portanto, uma posição.

Essa postura assimiladora aparece, inclusive, na bíblia quando Paulo diz em sua primeira carta aos Tessalonicenses (5:21) para colocarmos tudo a prova e ficarmos com o que é bom, que para ele, é, necessariamente, tudo aquilo não seja contraditório às doutrinas do evangelho de Cristo. Logo, Paulo também assume uma posição. Portanto, como afirma Gomes, “o dilema não é assumirmos ou não uma posição, mas assumi-la com espírito crítico”.

O grande problema é que não é isto o que acontece no Brasil, pois privilegiamos um objeto que o autor classifica como “o jeito”, ou seja, a tentativa de dissolver oposições sem que precisemos radicalizar. Isto deriva, segundo Gomes, de um particular ceticismo do povo que habita estas terras – e que não me darei ao trabalho de investigar os motivos, pois fugiria de minha alçada.

Por isso, não existiria nada mais ridículo neste país do que a crença, seja ela religiosa, política ou filosófica. O que Gomes acredita ser o resultado de uma confusão que fazemos entre imparcialidade e espírito crítico, já que para nós, as duas coisas andariam de mãos dadas e abandonar uma delas, significaria, necessariamente, desprezar ambas.

Um exemplo claro reside na tão propagada afirmativa: “não sou de direita nem de esquerda, meu partido é o Brasil”. Acontece que disso resulta uma ausência de projeto claro e definidor para os rumos do país. O que é contraditório, já que vivemos admirando os governos estadunidenses e europeus, povos que construíram para si um projeto próprio de progresso e alcançaram seus resultados justamente por persegui-los incessantemente.

Ou seja, o mito da imparcialidade nos paralisa e impede que criemos, de acordo com a nossa realidade e especificidades enquanto povo, uma meta própria. E como diria o cantor e compositor cearense, Belchior, em sua canção Madame Frigidaire: “um futuro de terceira, posto assim na geladeira, nunca vai ficar passado”.

Tudo isso acabou montando as bases necessárias para que um governo de caráter fascista colocasse em prática o duplipensamento abordado por Orwell em sua distopia, transformando a ficção em realidade.

Recentemente o Ministério da Saúde (que atualmente encontra-se sob o comando de um interino) decidiu alterar a divulgação dos dados referentes ao avanço da pandemia  do novo coronavírus no país. Primeiramente, a pasta retirou do site oficial dedicado ao monitoramento da covid-19, o número total de infectados e mortos pela doença, informando apenas os novos casos registrados diariamente. Depois, optou por retirar dos boletins epidemiológicos diários a contagem de mortes e confirmações de infecções registradas ao longo dos dias para acrescentar apenas os dados confirmados no dia de publicação dos boletins, como uma aparente tentativa de maquiar os dados diários da pandemia por aqui.

Antes disso, tínhamos uma disputa de narrativas entre o presidente da República e o Ministério da Saúde acerca do tipo de isolamento adotado e das reais consequências e gravidade da doença para a população. Jair Bolsonaro chegou a se referir ao novo coronavírus como uma “gripezinha”, ao mesmo tempo em que usava máscara para se proteger da doença.

Bolsonaro também revela suas contradições ao dizer que se preocupa com a vida dos brasileiros, ao mesmo tempo em que provoca aglomerações durante a pandemia; ou quando homenageia publicamente um torturador, participa de atos que pedem o fechamento do Congresso Nacional, enquanto diz que defende a democracia e a Constituição; se mostra um ferrenho defensor da liberdade de expressão e ataca jornalistas, mandando que calem a boca.

Esses são apenas alguns exemplos – poderíamos citar vários – de como o atual governo brinca com a realidade e a molda de acordo com suas necessidades. Sobre as características do duplipensamento, Orwell escreve: “Saber e não saber, estar consciente de mostrar-se cem por cento confiável ao contar mentiras construídas laboriosamente, defender ao mesmo tempo duas opiniões que se anulam uma à outra, sabendo que são contraditórias e acreditando nas duas; recorrer à lógica para questionar a lógica, repudiar a moralidade dizendo-se um moralista, acreditar que a democracia era impossível e que o Partido era guardião da democracia”. Eis os pontos marcantes da estratégia discursiva do atual presidente da República.

“Tudo certo como dois e dois são cinco”

Por fim, vale lembrar que um dos lemas do atual governo é um trecho bíblico retirado de João 8:32 que diz: “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Mas a verdade (se é que já existiu alguma única e universal) vem se tornando cada vez mais flexível e se configura de acordo com as necessidades do Chefe do Executivo.

Em uma conjuntura como a nossa, em que teorias conspiracionistas sobre o país correr o risco de se tornar uma nova Venezuela, ou mesmo de toda a imprensa estar mentindo sobre a gravidade da pandemia para prejudicar o presidente “mito” e salvador da pátria, ou mesmo a volta de absurdos como a crença no terraplanismo, fazem com que “a liberdade seja a liberdade de dizer que dois e dois são quatro”. Como diria Orwell, “quando se concorda nisto, o resto vem por si”.

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